O « entre-lugar » da identidade cultural moçambicana representada na obra Nós matamos o Cão-Tinhoso de Luís Bernardo Honwana
Introdução
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro
com o ‘novo’ que seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma
idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas
retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o
passado, refigurando-o como um ‘entre lugar’ contigente, que inova e interrompe
a atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e
não da nostalgia de viver (Bhabha 1998: 27).
Durante os anos 50 e 60,
período de grande repressão colonial, os intelectuais africanos utilizam a
escrita como forma de libertação e de afirmação de uma identidade nacional que
começava a constituir-se. Assim, a literatura nacional não deveria simplesmente
reproduzir a literatura européia, mas expressar uma nova cultura constituída a partir do encontro entre colonizadores e colonizados. Esse é o caso da
literatura moçambicana que surge como um prenúncio da independência diante da
colônia e diante da repressão que exercia a ditadura salazarista no período do
Estado Novo (1933-1974). Como explica Maria Fernanda Afonso: “há já, durante a
ocupação, atitudes pós-coloniais que decorrem de manifestações de reivindicação
ideológica , cultural e política” (Afonso 2004: 166). Dessa forma, alguns
autores africanos são considerados pós-coloniais, apesar de terem produzido
suas obras antes da Independência, como é o caso do contista moçambicano Luís
Bernardo Honwana que apoiou a luta pela libertação de seu país, como militante
da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Devido às suas atividades políticas, foi
preso em 1964. Nesse mesmo ano, publicou a antologia de contos : Nós matamos
o cão tinhoso, considerado o livro fundador da narrativa moçambicana e ,
hoje, presente em antologias e livros escolares.
Durante a época em que a
poesia era predominate na literatura moçambicana, Honwana era um dos poucos que
escrevia narrativas ficcionais. A partir do ponto de vista do colonizado ,
inscrevem-se em suas narrativas a crítica ao sistema colonialista, a denúncia
do racismo e da condição sócio-econômica dos negros e nativos.
Levando em consideração o
engajamento político de Honwana na luta de independência de seu país , cabe
questionar: o seu fazer literário situa-se apenas num comprometimento político
e ideológico ou de suas narrativas emerge uma mensagem humanista[1] ? Afim de responder essa questão , propomos ,
primeiramente , estudar o papel do intelectual na conscientização política e da
construção de uma identidade cultural própria. Em seguida, analisaremos a forma
como se desenvolve em suas narrativas o projeto de idependência de seus país
através da desalienação e da ruptura do silêncio imposto pela ditadura. Para isso
, utilizaremos como aparato teórico o livro O local da cultura do escritor indiano Homi Bhabha
(1998), que trata da identidade cultural
no período pós-colonial e , também , o livro A
negritude africana de língua portuguesa do professor de Literatura Africana
Pires Laranjeira (1995), que aborda o papel da literatura no combate e denúncia contra os colonizadores e na
revalorização do negro e da cultura do povo africano através do conceito de
negritude.
1 O surgimento de uma consciência política
1.1 A moçambicanidade : a negociação de uma identidade cultural híbrida
A partir das narrativas de
Honwana há a denúncia da segregação social e racial no período colonial mas ,
também, a proposta de uma sociedade pós-colonial , construída através do
diálogo entre as diferenças e da revalorização da cultura africana a partir da
idéia de hibridização , pluralidade étnica e linguística do povo moçambicano.
Aliás, o conceito de hibridez , proposto por Homi Bhabha , surge da dialética
entre o colonizado e o colonizador, definindo a criação de novos conceitos
estéticos a partir de uma construção transcultural[2]. Mas ,
como explica Bhabha : “ articulação social da diferença , da perspectiva da
minoria , é uma negociação complexa , em andamento , que procura conferir
autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação
histórica” ( Bhabha, 1998:19).
A cultura moçambicana
aparece nas narrativas de Honwana caracterizada por esse hibridismo que é a
síntese e a imbricação de diversas etnias , cosmogonias , religiões. E,
evidentemente , esse hibridismo está presente nas preocupações estéticas de
seus contos. Ora, opondo-se à idéia de assimilação da cultura do colonizador,
Honwana resgata em seus contos a cultura africana através dos mitos , tais como
a figura da cobra (“mamba” ou “nhoka”) e do cão, símbolos do mal tanto na
cultura africana quanto na cultura européia cristã. Ainda, ele resgata a
sabedoria ancestral , representada pelo velho Madala no conto “Dina”. E ,
também, explora o imaginário do povo presente na tradição oral , como se
observa no conto “ As mãos dos pretos” em que a narrativa transforma-se numa mise
en abyme , ou seja , numa transposição de estórias. Aliás, a
estrutura oral é muito explorada pelo autor , através de lítotes (repetições) ,
remetendo à arte popular de contar estórias. Dessa forma, o autor parece optar
pelo gênero conto , principalmente, por se tratar de uma forma de “ enunciado
que se deixa hibridizar facilmente , onde cabem figuras como pastiche e a
paródia, mas igualmente as técnicas da tradição oral , o irracional , a
incorporação dos mitos africanos”. Ora, como explica Afonso (2004) , os
contistas moçambicanos da antiga e da nova geração, parecem estar preocupados
em exprimir o desejo que os impulsionam a desconstruir o modelo literário
eurocentrista, “de engedrar um novo campo literário, os contistas moçambicanos
rodeiam o texto de formas preliminares que sustentam um contradiscurso ,
defendendo a opção de uma estética caracterizada por estratégias discursivas
que subvertem o cânone europeu, facilitando o hibridismo, a metamorfose dos
contributos europeus, o estabelecimento de novas redes de significação” (
Afonso 2004:171). Para isso , o universo plurilíngüe também é explorado a partir das línguas africanas, tais como o ronga , o crioulo ( língua mista,
nascida à partir do contato entre línguas africanas e o português) e do
português , ou seja , da língua do colonizador que converte-se , nas mãos do
autor, em instrumento de libertação para os colonizados”. Como afirma o próprio
Honwana, foram as instituições e a língua herdados do colonialismo que
permitiram a libertação e o poder contra o sistema colonial, favorecendo a
construção de uma nação proveniente de um “caleidoscópio social intricado ,
constituído por várias etnias e línguas. Os moçambicanos estão conscientes de
que a língua portuguesa faz parte do patrimônio nacional e que , por essa
razão, têm o direito de a utilizar, de a transformar, de a ‘moçambicanizar’
(Honwana apud Afonso 2004:34). Dessa forma , a identidade cultural
moçambicana pos-colonial situa-se num “entre-lugar” , onde passado e presente ,
cultura européia e tradição africana se entrecruzam.
Esse sentimento revolucionário
de libertação do povo e de construção de uma identidade moçambicana começa a
ser exprimida durante os anos 50 e 60 , período em que muitos militantes e
intelectuais foram exilados e que se fez muitos prisioneiros políticos , tais
como o próprio Honwana. Portanto , no fazer literário da geração de escritores
moçambicanos da qual faz parte Honwana , a literatura assume um caráter
exortativo e de combate ideológico, sócio-político e cultural contra o
colonizador , construindo através das narrativas uma memória coletiva , uma
identidade própria[3].
Com efeito , o escritor colonizado torna-se através da linguagem , “porta-voz
do povo ou de parte do povo , para legitimar o seu gesto , mesmo sabendo que os
mandatários o ignoram ou ignorarão” e , expressa pelo ato de escrever, “ o
gesto da revolta colectiva” , pois ele aposta “ no poder persuasivo da escrita
junto da comunidade dos que lêem e escrevem ou podem escrever e, nesta , dos
que possuem aspirações (sociais ) similares” (Laranjeira , 1995:174).
1.2 Visão humanista do problema étnico racial
Logo , fica evidente que a
obra de Honwana possui um comprometimento politico de denunciar a alienação do
povo colonizado, de formar uma consciência política e de construir uma
identidade nacional. Dessa forma, retomando o conceito humanista , que acredita
na capacidade do homem de mudar a sua realidade , tanto pelo seu intelecto
(humanismo sartriano) quanto pela sua ação (humanismo marxista) , pode-se
questionar se o próprio ato de escrever de Honwana não seria em si uma
expressão humanista? Assim , o autor não estaria somente escrevendo sob
influência da doutrina humanista , mas , também, o ato de escrever seria uma
ação humanista , pois ele age tentando mudar a realidade , combater a ideologia
da dominação e desconstruir os discursos preconceituosos e racistas , tidos
como verdade unica e notoriedade científica. Como fica evidente no conto “ As
mãos dos pretos” , em que uma criança pergunta aos adultos em sua volta porque
as palmas das mãos dos negros são brancas.
Neste conto , o
contra-discurso surge na voz da mãe do menino revelando que a verdade só pode
ser dita com amor. Nas palavras de grande humanismo da mãe , as mãos dos pretos
adquirem um valor de igualdade entre os homens. Ela explica que Deus fez as
palmas das mãos dos negros tão brancas quanto às dos brancos “ para mostrar
que o que os homens fazem , é apenas obra de homens... Que o que os homens fazem
é feito por mãos iguais , mãos de pessoas que se tiverem juizo sabem que antes
de serem qualquer outra coisa são homens” (Honwana , p.113). Então , a mãe ,
figura sábia e sem prepotência , constrói um discurso moderno de reconhecimento
das diferenças numa sociedade mutli-racial , desmascarando a idéia de inferioridade
dos negros que foi elaborada pelos colonizadores para justificar os seus atos.
Assim como em “As mãos dos
pretos” em “ A velhota” e em “ Dina”, Honwana estabelece uma dialética entre o
conceito de negritude[4] (que
revaloriza a figura do negro) e o conceito humanista , tratando o problema do
negro como um problema da própria humanidade. Em “Dina” , por exemplo, o autor
trabalha com o tema da negritude , tal como os poemas negritudistas dos anos
30. Contudo, é pertinente mencionar que nos anos 50 esse conceito não se limita
à propriedade étnica , mas , sobretudo , no valor do homem negro enquanto
humano. Como explica Laranjeira , no final dos anos 50, a Negritude que antes
era vista “ enquanto ‘simples afirmação do acto de existir no mundo’ ( Andrade
, 1958) , deixara de ter significado e propriedade , e a particularidade do
poeta negro , naquele momento, passava a ser outra: ‘ não é puramente étnica ,
mas tanto histórica como social e cultural , numa palavra , humana’”
(Laranjeira , 1995:133). Ora, fica evidente que a condição negra não é uma
existência racial objetiva, mas uma identidade socialmente construída , ao
longo da história, pelo dominador , que desejava traçar o negro como uma figura
estranha , exótica e inferior ao homem branco. Aliás , o conceito estético da
Negritude foi criado nos anos 30 , exatamente, para combater o conceito do
Negrismo que tratava da cultura africana e do próprio negro através duma
perspectiva fetichista. Como constata o personagem do conto “ A velhota” : “
todos me olhavam duma maneira incomodativa , como que a denunicar em mim um
elemento estranho , ridículo , exótico (...)” (Honwana , p. 82). Aqui
percebe-se que o jovem , negro e marginalizado, é consciente dessa construção
social de sua identidade . Além disso, ele sabe que esta serve para segregar o
mundo entre brancos e negros, dominadores e dominados. Como continua a analisar
o próprio personagem, o homem branco colonizador , quer dizer o Outro “
edificam muros de tabus e defendem-se com os mesmos nojentos olhares enojados
sempre que alguém vai para além desses muros. Eu que o diga!” (Honwana, p. 83).
Também , em “ Papá , cobra e
eu” , observa-se a denúncia da segregação racial existente no período colonial.
A família do narrador-personagem , Ginho, apesar de ser uma família burguesa
africana, que assimilou a cultura do colonizador não consegue ultrapassar esses
“muros de tabus” e também sofre repressão exercida pelo Sr. Castro , figura do
colonizador branco. O pai do menino diante às exigência de Sr. Castro , que
queria ser indenizado pela morte de seu cachorro (Lobo) tenta estabelecer um
diálogo . Contudo, Sr. Castro nega qualquer forma de sociabilização . O pai ,
sentido-se humilhado, não expressa sua raiva diante de Sr Castro.
Contudo , no momento do
jantar , deixa de ler a Bíblia, símbolo da cultura européia cristã e , propõe ;
“vamos rezar , simplesmente”. O pai , então, reza em língua ronga, quebrando
com o pacto social e cultural com os colonizadores e reestabelecendo seus laços
com sua identidade mais profunda.
1.3 A denúncia do estado de alienação e imposição do silêncio do povo moçambicano colonizado
Ao longo da leitura dos
contos, fica evidente o tom de denúncia contra a repressão , a discriminação racial,
a expoliação e a exploração do povo moçambicano colonizado. Através dos
personagens oprimidos e humilhados , percebe-se uma forma de alienação
representada pelo silêncio imposto pela censura e pela aparente passividade dos
personagens diante da crueldade e da injustiça que sofrem. No conto“ Papá,
cobra e eu”, por exemplo, o pai é humilhado e ameaçado pelo Sr. Castro , figura
do colonizador branco. Também, no conto “A velhota” , o jovem narrador é
agredido na rua , mas apesar de rebelde não pode reagir , pois deve garantir a
subsistência de sua mãe ( “ a velhota”) e de seus irmãos pequenos (“os miúdos”).
Ainda, no conto “Dina” (pronúncia do black-english da palavra inglesa “dinner” , que significa a hora do
almoço nas lavouras), o velho
Madala , apesar dos apelos do jovem rebelde , Djimo, não reage ao ver sua filha
ser abusada pelo capataz . E , em “Nhinguitmo” que em língua ronga significa
tempestade, em que se trata da desapropriação de terras pelos colonizadores.
Nesse conto, Virgulino Oito , trabalhador da “machamba” , vê seu sonho de
enriquecer através do cultivo de suas próprias terras se tornar inalcansável
por causa da cobiça do Sr. Administrador e acaba enlouquecendo.
Tanto em “ A velhota” quanto
“Dina” a imposição dos colonizadores não se limita ao plano moral , mas também
ao plano físico, através da violência e da exploração pelo trabalho. Assim , do
enfoque narrativo interno tanto do narrador de primeira pessoa, quanto do
narrador onisciente, vai-se pormenorizando a dor física dos personagens, que já
não conseguem se manter na verticalidade. E o
que se passa com o jovem narrador do conto “A velhota” no momento em que leva o
soco e , através da suspensão do tempo , vai descrevendo o seu corpo que cai
“lentamente, com plena consciência de estar caindo”. Ou ainda, através da
descrição do corpo curvado do velho Madala, moldado pelo duro e alienante
trabalho de arrancar raízes nas plantações (“machamba”).
Além disso, no conta “Dina”,
observa-se que o narrador onisciente descreve o mundo de expressão do
trabalhador rural dos tempos modernos (tão explorado quanto o escravo
oitocentista). Ora, o velho Madala vive num mundo silencioso, interiorizado,
guardando para si a injustiças sofridas. Nesse conto de Honwana, percebe-se um
espaço poetizado, através da descrição das sensações e das impressões do velho
Madala, homem da terra , preso ao chão , mas que através de um olhar subjetivo
e lírico consegue abstrair-se , fugindo do mundo opressor no qual vive. Essa
fuga lírica, fica bem clara na passagem em que a “machamba” metaforiza-se num
imenso “mar verde” e em que os trabalhadores são comparados à “estranhos
peixes”. Ora, essa passagem remete ao conceito marxista de alienação pelo
trabalho. Segundo Marx , o homem pode mudar a sua realidade e a natureza através
do trabalho, mas a natureza também pode mudar o homem, havendo , portanto , uma
relação entre a “mão” e o “espírito” do indivíduo. A consciência do homem
estabelece , assim, um elo com o seu ofício. Logo, compreende-se o estado de
alienação do velho Madala, figura emblemática do trabalhador rural das colônias
portuguesas , o qual já é estranho a si mesmo e não é dono das riquezas que
produz. Madala representa “o
colonizado negritudinista”
que pertence ao mundo rural, permanecendo “completamente iletrado, analfabeto,
à mercê dos seus empregadores , verdadeiros capatazes de mão-de-obra sem
direitos”[5] . Assim, Madala ao ver sua filha ser abusada pelo
capataz , apesar de ser encorajado pelo jovem Djimo à vingar-se, permanece
inerte e mudo , mas num silêncio “tenso”, “pesado” . Seu único gesto é
representado pelo automatismo de seu trabalho: arrancar as plantas que encontra
no chão .
Dotado de uma sabedoria
africana ancestral ( sagesse), o velho Madala representa uma forma de
revolução não violenta, pois está “preso a uma mentalidade indefesa perante a
manipulação colonialista da sua vontade”. Como explica Pires Laranjeira: “O
negro trabalhador, na sua incorporação em macro-signos predicáticos , não chega
a desempenhar qualquer papel de intervenção , a não ser o de produzir riqueza
alheia , na produção se alienando e da riqueza se alheando , por incapacidade
de compreensão do sistema que o determina” (Laranjeira, p. 359). Com efeito,
essa “incapacidade de compreensão” de Madala, homem rural, que talvez não tenha
freqüentado a escola, faz com que ele desconheça o lugar que ocupa de homem
colonizado e explorado, impedindo-o de instaurar, a partir da idéia marxista[6],
uma luta de classes[7].
Em oposição à atitude de Madala , aparece , portanto a figura do jovem rebelde
representando a revolta violenta. Ora, o jovem não compreende a inércia de
Madala, pois ele deseja desafiar o capataz e retomar as rédeas de sua própria
vida. E por isso que ele recusa de voltar ao trabalho e acaba sendo agredido
pelo capataz.
Todavia, mesmo parecendo
sujeitos passivos ou covardes, esses personagens possuem uma consciência de sua
condição e uma sabedoria, pois sabem que o momento da luta e da verdadeira
revolta está por vir, como explica o pai do menino Ginho em “Papá, cobra e eu”
:
- Meu filho, tem de haver uma esperança! Quando um dia
acaba e sabemos que amanhã sera tudo igualzinho , temos de ir arranjar forças
para continuar a sorrir e continuar a dizer ‘isso não tem importância’... Ainda
hoje viste o Sr. Castro a enxovalhar-me! Isso foi so um bocadinho da ração de
hoje... Não meu filho, mesmo que isto tudo so O negue, Ele tem de existir!...
(Honwana, p.105)
Ora, ao analisar a situação,
o pai revela ao filho a crueldade do mundo dos adultos, mas o conforta com
essas palavras de esperança e de fé. Ele sabe que o momento da mudança e do
combate contra a colonização e a repressão que esta impõe virá, mas é preciso
dar tempo ao tempo. Pois, como ele explica sabiamente: “ Quando um cavalo
endoidece dá-se-lhe um tiro e tudo acaba , mas aos cavalos mansos mata-se todos
os dias. Todos os dias, ouviste? Todos , todos, todos enquanto eles se
aguentarem de pé!...” (Honwana, p.106).
2 O desejo de revolta contra o colonizador
2.1 A
problemática do
silêncio : a voz não quer mais se calar
Então , ao longo dos contos
, Honwana vai projetando para um futuro próximo a independência de moçambique
que se fará através da tomada de consciência do povo . Opondo-se à problemática
do silêncio imposto pela censura e à alienação , recorrentes em todos os contos
, está a figura das crianças, narradores privilegiados de Honwana. Pois , esses
sujeitos inquisitores rompem com o silêncio e , aos poucos, vão tomando
consciência do contexto político em que vivem . Como se percebe no conto “
Inventário de moveis e jacentes” em que o narrador , um menino chamado Ginho que
no silêncio da noite , enquanto toda sua família dorme , vai narrando de sua
cama o mundo que o circunda. Assim, ele vai revelando ao leitor o contexto da
repressão e do medo da ditadura. Ora , apesar de ainda não ter consciência do
que se passa , o menino descreve seu ambiente como uma forma de enclausuramento
: “ As portas e as janelas estão fechadas . O papá não gosta de dormir com as
portas abertas não sei porquê”. A criança , não parece compreender a dura realidade
do mundo dos adultos , mas capta , intuitivamente, a repressão e a censura que
peermeam o seu meio , descrevendo a sensação de claustrofobia devido ao ar
“pesado” do quarto onde dorme, pois como explica o menino: “ além de estar tudo
fechado , dormem aqui , incluindo-me , 5 pessoas”. Logo , percebe-se que a família
do menino ocupa uma condição social desfavorável, pois não há conforto na casa.
Mas, apesar do despojamento e da precariedade dos móveis , o menino revela ao
leitor que existem “caixotes com livros” que parecem pertencer ao seu pai. Ao
longo da narrativa, o leitor compreende que o pai do menino , que já esteve
preso , é um intelectual e revolucionário. Dessa forma, fica mais uma vez
evidente o papel da cultura na formação de consciência política.
2.2 A morte do Cão-Tinhoso : projeto de independência de Moçambique
No conto “Nós matamos o
Cão-Tinhoso” as crianças também têm um papel central, sendo que ao matar o Cão-Tinhoso
elas estariam representando a independência de Moçambique. Nesse conto que dá
nome ao livro , o cão é descrito pelo narrador personagem, um garoto negro também
chamado Ginho, como um cão “feio”, de “pele velha”, “cheia de pelos brancos
[sic] cicatrizes e muitas feridas”, emblema do povo moçambicano colonizado,
excluído. Como explica Ginho, o cão só consegue despertar o afeto de Isaura,
menina considerada “maluquinha” e que aparece na narrativa como duplo do cão.
Entretanto, ao longo da
estória o narrador-personagem também possui momentos de afeto e de
identificação com o cão, como na passagem em que ambos estão no Clube ,
observando o Senhor Administrador , figura que representa a autoridade
colonial, e o Doutor da Veterinária, jogarem cartas (“sueca”). No momento que o
Senhor Administrador perdeu, ou melhor, “levou um capote”, Ginho e o cão riram
de sua derrota, o que o deixou zangado, como relata o próprio narrador: “Ele
sabia que eu sabia que ele estava a perder. Olhou para mim e para o Cão-Tinhoso
sem saber com qual de nós os dois havia de correr primeiro. Enquanto pensava
para resolver isso cuspiu para nos os dois, isto é, para um sítio entre nós
dois. Esta-se mesmo a ver que o cuspo tanto era para mim como para o
Cão-Tinhoso” (Honwana 1972:17). Nessa passagem, percebece-se na atitude
prepotente do Senhor Administrador que tanto o cão quanto o menino negro são
objetos de desprezo, de nojo. Ora, Ginho faz parte da “malta”, ou seja, da
baixa extração social e , por isso, não é bem-vindo junto às notoriedades do local,
ficando , mais uma vez, bem clara a segregação racial e social no período
colonial. Também, observa-se essa organização hierárquica no grupo de meninos,
na qual Quim, menino branco, é o chefe da banda. Ele insulta os outros meninos
de “negralhada”, “cabroada escura”, impondo a sua suposta superioridade de branco
e instaura a repressão e o medo. Aliás , é ele que obrigou Ginho a dar o
primeiro tiro no cão . Contudo, fica claro que o mundo dos adultos é mais
segregado do que o mundo das crianças, pois a escola que os meninos freqüentam
é uma escola mista , ou seja, onde negros, brancos e mestiços compartilham um
mesmo espaço.
A estrutura do conto, como
em outros contos do livro, é construída como uma tragédia grega , sendo que o
ápice da narrativa, ou seja , a akmé, é o momento em que os garotos
levam o cão para a “estrada do Matadouro” ( passando do espaço urbano para o
espaço rural) onde o matarão. Assim , a tensão da narrativa aumenta à medida
que o narrador-personagem expõe seu medo e sua compaixão pelo cão. Contudo,
como já foi mencionado, Ginho é obrigado a matar o cão para poder se fazer
respeitar pelos outros meninos. Observa-se nesse ato , um símbolo da tradição
africana, que representa o ato de matar animais como um rito de passagem para a
vida adulta.
Logo, fica claro que para
passar por essa transformação, essa tomada de consciência do mundo cruel dos
adultos , o cão precisa ser sacrificado. Ora, associando a figura do cão,
símbolo da colonização, à figura de Cristo que foi crucificado para salvar os
homens, pode-se interpretar a morte do cão como expressão simbólica do
renascimento do povo moçambicano que esta por vir, como confirma a afirmação de
Maria Fernanda Afonso, na passagem a seguir:
‘Nós matamos o cão tinhoso’ enuncia, em forma de
parábola patética, a tomada de consciência do homem africano que, à semelhança
de Cristo, teve de morrer para que renascesse o homem novo, o que pegará em
armas contra aqules que lhe negarem todos os direitos” (Afonso, P 139).
Então, compreendemos que o “
nós ” do título do conto engloba tanto o sujeito da enunciação quanto o sujeito
do enunciado , sugerindo a coletividade, o conjunto de todos os colonizados.
Aqui, o cão representa o próprio homem moçambicano e de seu olhar tenta revelar
aos meninos sua cumplicidade, seu laços fraternos. Porém , os garotos não
percebem essa comunicação pelos olhos, somente Isaura e o narrador compartilham
dessa verdade com o cão.
Dessa forma, o cão
representa um símbolo ambígüo , pois , primeiramente, na cultura européia
cristã tanto a palavra “cão” como “tinhoso” são utlizadas para substiuir o
demônio , ou seja , o mal. Seguindo essa acepção das duas palavras , o
Cão-Tinhoso representa aquilo que não é saudável, a doença , o mal , enfim , o
peso da colonização e , por isso , deve exterminado. Em segundo lugar, através
do ponto de vista infantil a descrição do cão ganha um tom lírico , pois apesar
de doente , talvez sofrendo de uma catarata , o menino esboça de forma
subjetiva a figura pura do cão , que , para ele, tem olhos azuis, cor
celestial, de uma expressividade quase humana . Seus olhos “ sem brilho” e
“cheios de lágrimas” expressam o sofrimento e a fraqueza do povo moçambicano
colonizado. Cão-Tinhoso tem olhos que se alargam enquanto a boca se cala. Como
descreve o narrador-criança, o cão tem “olhos grandes a olhar como uma pessoa a
pedir qualquer coisa sem querer dizer”. Assim , a figura dos olhos aparece no
conto como um leitmotiv , pois é através dos olhos que ocorre a
revelação, a tomada de consciência da realidade absurda e insólita. Ora, os
olhos do cão são grandes, pois ele é o único que tem consciência. E um olhar
que expressa exatamente o “entre-lugar” do povo moçambicano pós-colonial pois ,
que guarda nas retinas dos olhos o passado de sofrimento e , ao mesmo tempo , dirige
o olhar para um presente próximo. A propósito , essa humanização do cão remete
ao cão “baleia” do livro Vida Secas do escritor brasileiro Graciliano
Ramos , que tinha também um olhar que expressava uma inteligência mais
significativa que a do seu próprio dono.
Portanto, Honwana parece
sugerir em suas narrativas que o silêncio será rompido através das crianças ,
esperança do futuro e da nova geração. No conto, a menina Isaura parece
representar essa voz que não quer se calar. É interessante observar que o nome
da menina também remete à um personagem muito importante da Literatura
Brasileira (também uma ex-côlonia portuguesa que recebeu um grande contigente
de escravos africanos ), a escrava Isaura , símbolo da libertação dos negros
escravizados. Isaura, ao contrário dos meninos, sente a morte do cão e quer fazer
justiça. Contudo , ela que é contra a violência , ameaça contar tudo para seu
pai e pedir para ele bater nos meninos que mataram o Cão-Tinhoso. Ora, o
desejo de punição da menina através da violência expressa uma atitude paradoxal
, talvez reproduzindo a violência do sistema colonial.
Conclusão
Ao longo da análise dos
contos de Honwana , fica claro que sua obra difunde tanto um comprometimento
político quanto um conceito humanista. Por isso, podemos comparar o seu fazer
literário com a idéia de práxis , ou seja , uma ação objetiva que
permite ao ser humano construir a si mesmo e o seu mundo, de forma livre e
autônoma, nos âmbitos cultural e político.
Portanto, fica evidente o
papel da literatura na formação de uma consciência política e na formação de
uma identidade cultural. Como vimos , o fato da obra de Honwana ser considerada
pós-colonial está associado à esse compromisso de denúncia , combate e de
construção de uma identidade híbrida que não é mais obrigada à assimilar a
cultura do colonizador , mas que dialoga com esta e com sua cultura africana.
Assim , percebe-se que o recurso linguistico é muito importante para essa
construção , pois o escritor reinventa a lingua do colonizador e a utiliza como
instrumento de libertação.
Enfim , a obra de Honwana
parece construir uma memória coletiva , que não esquece o seu passado de
repressão , de expoliação e de discriminação social e racial. Contudo, Honwana
não se limita à denúncia , vai mais longe , propondo também o respeito das
diferenças numa sociedade multi-racial.
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Vol. 8, n° 1 , pp 39-42. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1166583. Acessado: 15/12/2008.
Honwana Luís Bernardo. Nós matamos o Cão-Tinhoso.
Porto: Afrontamento. 4 a ed. 1972.
[1] Aqui, consideramos como humanismo
o conjunto de doutrinas fundamentadas de maneira precisa nos interesses,
potencialidades e faculdades do ser humano, sublinhando sua capacidade para a
criação e transformação da realidade natural e social, e seu livre-arbítrio
diante de pretensos poderes transcendentes, ou de condicionamentos naturais e
históricos. No século XX o conceito humanista foi defendido ,
principalmente, por Sartre, filósofo existencialista que defendia que “L’existencialisme
c’est un humanisme” e considerava que o homem pode mudar a realidade através de
seu intelecto e, pelo marxismo ocidental que, por sua vez, considera homem como
indivíduo que age e que pode mudar sua realidade através de sua relação com o
trabalho.
[3] Como explica Russel Hamilton (1978): « Committed
literature is exhortation and a form of assurance to like-minded people that
struggle goes on despite setbacks and suffering. Imaginative writing cannot win
a revolution, but it can intercede emotionally and ideologically in the cause
of change”.
[4]A negritude, corrente literaria e
politica criada depois da Primeira Guerra Mundial e ligada ao anticolonialismo,
opõe-se ao conceito de negrismo , que caracteriza de forma fetichista o negro africano.
Dessa forma, a negritude tinha , por um lado, a intenção de revalorizar a
figura do negro e sua cultura e , por outro lado, rejeitar a assimilação cultural.
[6] E pertinente lembrar que durante os anos 50 , o
mundo estava divido entre o mundo capitalista, representado pela super-potência
norte-americana e comunista, representada pela super-potência soviética. Ora,
com o intuito de difundir sua ideologia e impôr o seu poder político, a União
Soviética ajudou os países africanos no processo revolucionário de
idependência, como a FRELIMO. Logo, a mensagem humanista que emerge do conto
“Dina” parece seguir a linha ideológica marxista.
[7] A afirmação de Laranjeira, à
seguir, corrobora com essa análise do conto: “Dessas figuras nomeadas, que
perfazem a formação social abrangente dos colonizados, sobretudo negros, com
alguns mestiços , pode dizer-se que não conscienticializam uma classe ou um
conjunto de classe ou um conjunto de classes interessadas num projeto
ideológico de anti-colonialismo, nacionalismo ou de revolução proletária”
(LARANJEIRA, 359)
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