19 de set. de 2014

Análise literário _ O entre lugar de Luís Bernardo Honwana

O « entre-lugar » da identidade cultural moçambicana representada na obra Nós matamos o Cão-Tinhoso de Luís Bernardo Honwana

Introdução


O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o ‘novo’ que seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um ‘entre lugar’ contigente, que inova e interrompe a atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de viver (Bhabha 1998: 27).

Durante os anos 50 e 60, período de grande repressão colonial, os intelectuais africanos utilizam a escrita como forma de libertação e de afirmação de uma identidade nacional que começava a constituir-se. Assim, a literatura nacional não deveria simplesmente reproduzir a literatura européia, mas expressar uma nova cultura constituída a partir do encontro entre colonizadores e colonizados. Esse é o caso da literatura moçambicana que surge como um prenúncio da independência diante da colônia e diante da repressão que exercia a ditadura salazarista no período do Estado Novo (1933-1974). Como explica Maria Fernanda Afonso: “há já, durante a ocupação, atitudes pós-coloniais que decorrem de manifestações de reivindicação ideológica , cultural e política” (Afonso 2004: 166). Dessa forma, alguns autores africanos são considerados pós-coloniais, apesar de terem produzido suas obras antes da Independência, como é o caso do contista moçambicano Luís Bernardo Honwana que apoiou a luta pela libertação de seu país, como militante da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Devido às suas atividades políticas, foi preso em 1964. Nesse mesmo ano, publicou a antologia de contos : Nós matamos o cão tinhoso, considerado o livro fundador da narrativa moçambicana e , hoje, presente em antologias e livros escolares.
Durante a época em que a poesia era predominate na literatura moçambicana, Honwana era um dos poucos que escrevia narrativas ficcionais. A partir do ponto de vista do colonizado , inscrevem-se em suas narrativas a crítica ao sistema colonialista, a denúncia do racismo e da condição sócio-econômica dos negros e nativos.
Levando em consideração o engajamento político de Honwana na luta de independência de seu país , cabe questionar: o seu fazer literário situa-se apenas num comprometimento político e ideológico ou de suas narrativas emerge uma mensagem humanista[1] ? Afim de responder essa questão , propomos , primeiramente , estudar o papel do intelectual na conscientização política e da construção de uma identidade cultural própria. Em seguida, analisaremos a forma como se desenvolve em suas narrativas o projeto de idependência de seus país através da desalienação e da ruptura do silêncio imposto pela ditadura. Para isso , utilizaremos como aparato teórico o livro O local da cultura do escritor indiano Homi Bhabha (1998), que trata da identidade cultural no período pós-colonial e , também , o livro A negritude africana de língua portuguesa do professor de Literatura Africana Pires Laranjeira (1995), que aborda o papel da literatura no combate e denúncia contra os colonizadores e na revalorização do negro e da cultura do povo africano através do conceito de negritude.

1 O surgimento de uma consciência política

1.1 A moçambicanidade : a negociação de uma identidade cultural híbrida

A partir das narrativas de Honwana há a denúncia da segregação social e racial no período colonial mas , também, a proposta de uma sociedade pós-colonial , construída através do diálogo entre as diferenças e da revalorização da cultura africana a partir da idéia de hibridização , pluralidade étnica e linguística do povo moçambicano. Aliás, o conceito de hibridez , proposto por Homi Bhabha , surge da dialética entre o colonizado e o colonizador, definindo a criação de novos conceitos estéticos a partir de uma construção transcultural[2]. Mas , como explica Bhabha : “ articulação social da diferença , da perspectiva da minoria , é uma negociação complexa , em andamento , que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica” ( Bhabha, 1998:19).
A cultura moçambicana aparece nas narrativas de Honwana caracterizada por esse hibridismo que é a síntese e a imbricação de diversas etnias , cosmogonias , religiões. E, evidentemente , esse hibridismo está presente nas preocupações estéticas de seus contos. Ora, opondo-se à idéia de assimilação da cultura do colonizador, Honwana resgata em seus contos a cultura africana através dos mitos , tais como a figura da cobra (“mamba” ou “nhoka”) e do cão, símbolos do mal tanto na cultura africana quanto na cultura européia cristã. Ainda, ele resgata a sabedoria ancestral , representada pelo velho Madala no conto “Dina”. E , também, explora o imaginário do povo presente na tradição oral , como se observa no conto “ As mãos dos pretos” em que a narrativa transforma-se numa mise en abyme , ou seja , numa transposição de estórias. Aliás, a estrutura oral é muito explorada pelo autor , através de lítotes (repetições) , remetendo à arte popular de contar estórias. Dessa forma, o autor parece optar pelo gênero conto , principalmente, por se tratar de uma forma de “ enunciado que se deixa hibridizar facilmente , onde cabem figuras como pastiche e a paródia, mas igualmente as técnicas da tradição oral , o irracional , a incorporação dos mitos africanos”. Ora, como explica Afonso (2004) , os contistas moçambicanos da antiga e da nova geração, parecem estar preocupados em exprimir o desejo que os impulsionam a desconstruir o modelo literário eurocentrista, “de engedrar um novo campo literário, os contistas moçambicanos rodeiam o texto de formas preliminares que sustentam um contradiscurso , defendendo a opção de uma estética caracterizada por estratégias discursivas que subvertem o cânone europeu, facilitando o hibridismo, a metamorfose dos contributos europeus, o estabelecimento de novas redes de significação” ( Afonso 2004:171). Para isso , o universo plurilíngüe também é explorado a partir das línguas africanas, tais como o ronga , o crioulo ( língua mista, nascida à partir do contato entre línguas africanas e o português) e do português , ou seja , da língua do colonizador que converte-se , nas mãos do autor, em instrumento de libertação para os colonizados”. Como afirma o próprio Honwana, foram as instituições e a língua herdados do colonialismo que permitiram a libertação e o poder contra o sistema colonial, favorecendo a construção de uma nação proveniente de um “caleidoscópio social intricado , constituído por várias etnias e línguas. Os moçambicanos estão conscientes de que a língua portuguesa faz parte do patrimônio nacional e que , por essa razão, têm o direito de a utilizar, de a transformar, de a ‘moçambicanizar’ (Honwana apud Afonso 2004:34). Dessa forma , a identidade cultural moçambicana pos-colonial situa-se num “entre-lugar” , onde passado e presente , cultura européia e tradição africana se entrecruzam.
Esse sentimento revolucionário de libertação do povo e de construção de uma identidade moçambicana começa a ser exprimida durante os anos 50 e 60 , período em que muitos militantes e intelectuais foram exilados e que se fez muitos prisioneiros políticos , tais como o próprio Honwana. Portanto , no fazer literário da geração de escritores moçambicanos da qual faz parte Honwana , a literatura assume um caráter exortativo e de combate ideológico, sócio-político e cultural contra o colonizador , construindo através das narrativas uma memória coletiva , uma identidade própria[3]. Com efeito , o escritor colonizado torna-se através da linguagem , “porta-voz do povo ou de parte do povo , para legitimar o seu gesto , mesmo sabendo que os mandatários o ignoram ou ignorarão” e , expressa pelo ato de escrever, “ o gesto da revolta colectiva” , pois ele aposta “ no poder persuasivo da escrita junto da comunidade dos que lêem e escrevem ou podem escrever e, nesta , dos que possuem aspirações (sociais ) similares” (Laranjeira , 1995:174).

1.2 Visão humanista do problema étnico racial

Logo , fica evidente que a obra de Honwana possui um comprometimento politico de denunciar a alienação do povo colonizado, de formar uma consciência política e de construir uma identidade nacional. Dessa forma, retomando o conceito humanista , que acredita na capacidade do homem de mudar a sua realidade , tanto pelo seu intelecto (humanismo sartriano) quanto pela sua ação (humanismo marxista) , pode-se questionar se o próprio ato de escrever de Honwana não seria em si uma expressão humanista? Assim , o autor não estaria somente escrevendo sob influência da doutrina humanista , mas , também, o ato de escrever seria uma ação humanista , pois ele age tentando mudar a realidade , combater a ideologia da dominação e desconstruir os discursos preconceituosos e racistas , tidos como verdade unica e notoriedade científica. Como fica evidente no conto “ As mãos dos pretos” , em que uma criança pergunta aos adultos em sua volta porque as palmas das mãos dos negros são brancas.
Neste conto , o contra-discurso surge na voz da mãe do menino revelando que a verdade só pode ser dita com amor. Nas palavras de grande humanismo da mãe , as mãos dos pretos adquirem um valor de igualdade entre os homens. Ela explica que Deus fez as palmas das mãos dos negros tão brancas quanto às dos brancos “ para mostrar que o que os homens fazem , é apenas obra de homens... Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais , mãos de pessoas que se tiverem juizo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens” (Honwana , p.113). Então , a mãe , figura sábia e sem prepotência , constrói um discurso moderno de reconhecimento das diferenças numa sociedade mutli-racial , desmascarando a idéia de inferioridade dos negros que foi elaborada pelos colonizadores para justificar os seus atos.
Assim como em “As mãos dos pretos” em “ A velhota” e em “ Dina”, Honwana estabelece uma dialética entre o conceito de negritude[4] (que revaloriza a figura do negro) e o conceito humanista , tratando o problema do negro como um problema da própria humanidade. Em “Dina” , por exemplo, o autor trabalha com o tema da negritude , tal como os poemas negritudistas dos anos 30. Contudo, é pertinente mencionar que nos anos 50 esse conceito não se limita à propriedade étnica , mas , sobretudo , no valor do homem negro enquanto humano. Como explica Laranjeira , no final dos anos 50, a Negritude que antes era vista “ enquanto ‘simples afirmação do acto de existir no mundo’ ( Andrade , 1958) , deixara de ter significado e propriedade , e a particularidade do poeta negro , naquele momento, passava a ser outra: ‘ não é puramente étnica , mas tanto histórica como social e cultural , numa palavra , humana’” (Laranjeira , 1995:133). Ora, fica evidente que a condição negra não é uma existência racial objetiva, mas uma identidade socialmente construída , ao longo da história, pelo dominador , que desejava traçar o negro como uma figura estranha , exótica e inferior ao homem branco. Aliás , o conceito estético da Negritude foi criado nos anos 30 , exatamente, para combater o conceito do Negrismo que tratava da cultura africana e do próprio negro através duma perspectiva fetichista. Como constata o personagem do conto “ A velhota” : “ todos me olhavam duma maneira incomodativa , como que a denunicar em mim um elemento estranho , ridículo , exótico (...)” (Honwana , p. 82). Aqui percebe-se que o jovem , negro e marginalizado, é consciente dessa construção social de sua identidade . Além disso, ele sabe que esta serve para segregar o mundo entre brancos e negros, dominadores e dominados. Como continua a analisar o próprio personagem, o homem branco colonizador , quer dizer o Outro “ edificam muros de tabus e defendem-se com os mesmos nojentos olhares enojados sempre que alguém vai para além desses muros. Eu que o diga!” (Honwana, p. 83).
Também , em “ Papá , cobra e eu” , observa-se a denúncia da segregação racial existente no período colonial. A família do narrador-personagem , Ginho, apesar de ser uma família burguesa africana, que assimilou a cultura do colonizador não consegue ultrapassar esses “muros de tabus” e também sofre repressão exercida pelo Sr. Castro , figura do colonizador branco. O pai do menino diante às exigência de Sr. Castro , que queria ser indenizado pela morte de seu cachorro (Lobo) tenta estabelecer um diálogo . Contudo, Sr. Castro nega qualquer forma de sociabilização . O pai , sentido-se humilhado, não expressa sua raiva diante de Sr Castro.
Contudo , no momento do jantar , deixa de ler a Bíblia, símbolo da cultura européia cristã e , propõe ; “vamos rezar , simplesmente”. O pai , então, reza em língua ronga, quebrando com o pacto social e cultural com os colonizadores e reestabelecendo seus laços com sua identidade mais profunda.

1.3 A denúncia do estado de alienação e imposição do silêncio do povo moçambicano colonizado

Ao longo da leitura dos contos, fica evidente o tom de denúncia contra a repressão , a discriminação racial, a expoliação e a exploração do povo moçambicano colonizado. Através dos personagens oprimidos e humilhados , percebe-se uma forma de alienação representada pelo silêncio imposto pela censura e pela aparente passividade dos personagens diante da crueldade e da injustiça que sofrem. No conto“ Papá, cobra e eu”, por exemplo, o pai é humilhado e ameaçado pelo Sr. Castro , figura do colonizador branco. Também, no conto “A velhota” , o jovem narrador é agredido na rua , mas apesar de rebelde não pode reagir , pois deve garantir a subsistência de sua mãe ( “ a velhota”) e de seus irmãos pequenos (“os miúdos”). Ainda, no conto “Dina” (pronúncia do black-english da palavra inglesa “dinner” , que significa a hora do almoço nas lavouras), o velho Madala , apesar dos apelos do jovem rebelde , Djimo, não reage ao ver sua filha ser abusada pelo capataz . E , em “Nhinguitmo” que em língua ronga significa tempestade, em que se trata da desapropriação de terras pelos colonizadores. Nesse conto, Virgulino Oito , trabalhador da “machamba” , vê seu sonho de enriquecer através do cultivo de suas próprias terras se tornar inalcansável por causa da cobiça do Sr. Administrador e acaba enlouquecendo.
Tanto em “ A velhota” quanto “Dina” a imposição dos colonizadores não se limita ao plano moral , mas também ao plano físico, através da violência e da exploração pelo trabalho. Assim , do enfoque narrativo interno tanto do narrador de primeira pessoa, quanto do narrador onisciente, vai-se pormenorizando a dor física dos personagens, que já não conseguem se manter na verticalidade. E o que se passa com o jovem narrador do conto “A velhota” no momento em que leva o soco e , através da suspensão do tempo , vai descrevendo o seu corpo que cai “lentamente, com plena consciência de estar caindo”. Ou ainda, através da descrição do corpo curvado do velho Madala, moldado pelo duro e alienante trabalho de arrancar raízes nas plantações (“machamba”).
Além disso, no conta “Dina”, observa-se que o narrador onisciente descreve o mundo de expressão do trabalhador rural dos tempos modernos (tão explorado quanto o escravo oitocentista). Ora, o velho Madala vive num mundo silencioso, interiorizado, guardando para si a injustiças sofridas. Nesse conto de Honwana, percebe-se um espaço poetizado, através da descrição das sensações e das impressões do velho Madala, homem da terra , preso ao chão , mas que através de um olhar subjetivo e lírico consegue abstrair-se , fugindo do mundo opressor no qual vive. Essa fuga lírica, fica bem clara na passagem em que a “machamba” metaforiza-se num imenso “mar verde” e em que os trabalhadores são comparados à “estranhos peixes”. Ora, essa passagem remete ao conceito marxista de alienação pelo trabalho. Segundo Marx , o homem pode mudar a sua realidade e a natureza através do trabalho, mas a natureza também pode mudar o homem, havendo , portanto , uma relação entre a “mão” e o “espírito” do indivíduo. A consciência do homem estabelece , assim, um elo com o seu ofício. Logo, compreende-se o estado de alienação do velho Madala, figura emblemática do trabalhador rural das colônias portuguesas , o qual já é estranho a si mesmo e não é dono das riquezas que produz. Madala representa “o colonizado negritudinista” que pertence ao mundo rural, permanecendo “completamente iletrado, analfabeto, à mercê dos seus empregadores , verdadeiros capatazes de mão-de-obra sem direitos”[5] . Assim, Madala ao ver sua filha ser abusada pelo capataz , apesar de ser encorajado pelo jovem Djimo à vingar-se, permanece inerte e mudo , mas num silêncio “tenso”, “pesado” . Seu único gesto é representado pelo automatismo de seu trabalho: arrancar as plantas que encontra no chão .
Dotado de uma sabedoria africana ancestral ( sagesse), o velho Madala representa uma forma de revolução não violenta, pois está “preso a uma mentalidade indefesa perante a manipulação colonialista da sua vontade”. Como explica Pires Laranjeira: “O negro trabalhador, na sua incorporação em macro-signos predicáticos , não chega a desempenhar qualquer papel de intervenção , a não ser o de produzir riqueza alheia , na produção se alienando e da riqueza se alheando , por incapacidade de compreensão do sistema que o determina” (Laranjeira, p. 359). Com efeito, essa “incapacidade de compreensão” de Madala, homem rural, que talvez não tenha freqüentado a escola, faz com que ele desconheça o lugar que ocupa de homem colonizado e explorado, impedindo-o de instaurar, a partir da idéia marxista[6], uma luta de classes[7]. Em oposição à atitude de Madala , aparece , portanto a figura do jovem rebelde representando a revolta violenta. Ora, o jovem não compreende a inércia de Madala, pois ele deseja desafiar o capataz e retomar as rédeas de sua própria vida. E por isso que ele recusa de voltar ao trabalho e acaba sendo agredido pelo capataz.
Todavia, mesmo parecendo sujeitos passivos ou covardes, esses personagens possuem uma consciência de sua condição e uma sabedoria, pois sabem que o momento da luta e da verdadeira revolta está por vir, como explica o pai do menino Ginho em “Papá, cobra e eu” :
- Meu filho, tem de haver uma esperança! Quando um dia acaba e sabemos que amanhã sera tudo igualzinho , temos de ir arranjar forças para continuar a sorrir e continuar a dizer ‘isso não tem importância’... Ainda hoje viste o Sr. Castro a enxovalhar-me! Isso foi so um bocadinho da ração de hoje... Não meu filho, mesmo que isto tudo so O negue, Ele tem de existir!... (Honwana, p.105)
Ora, ao analisar a situação, o pai revela ao filho a crueldade do mundo dos adultos, mas o conforta com essas palavras de esperança e de fé. Ele sabe que o momento da mudança e do combate contra a colonização e a repressão que esta impõe virá, mas é preciso dar tempo ao tempo. Pois, como ele explica sabiamente: “ Quando um cavalo endoidece dá-se-lhe um tiro e tudo acaba , mas aos cavalos mansos mata-se todos os dias. Todos os dias, ouviste? Todos , todos, todos enquanto eles se aguentarem de pé!...” (Honwana, p.106).

2 O desejo de revolta contra o colonizador

2.1 A problemática do silêncio : a voz não quer mais se calar

Então , ao longo dos contos , Honwana vai projetando para um futuro próximo a independência de moçambique que se fará através da tomada de consciência do povo . Opondo-se à problemática do silêncio imposto pela censura e à alienação , recorrentes em todos os contos , está a figura das crianças, narradores privilegiados de Honwana. Pois , esses sujeitos inquisitores rompem com o silêncio e , aos poucos, vão tomando consciência do contexto político em que vivem . Como se percebe no conto “ Inventário de moveis e jacentes” em que o narrador , um menino chamado Ginho que no silêncio da noite , enquanto toda sua família dorme , vai narrando de sua cama o mundo que o circunda. Assim, ele vai revelando ao leitor o contexto da repressão e do medo da ditadura. Ora , apesar de ainda não ter consciência do que se passa , o menino descreve seu ambiente como uma forma de enclausuramento : “ As portas e as janelas estão fechadas . O papá não gosta de dormir com as portas abertas não sei porquê”. A criança , não parece compreender a dura realidade do mundo dos adultos , mas capta , intuitivamente, a repressão e a censura que peermeam o seu meio , descrevendo a sensação de claustrofobia devido ao ar “pesado” do quarto onde dorme, pois como explica o menino: “ além de estar tudo fechado , dormem aqui , incluindo-me , 5 pessoas”. Logo , percebe-se que a família do menino ocupa uma condição social desfavorável, pois não há conforto na casa. Mas, apesar do despojamento e da precariedade dos móveis , o menino revela ao leitor que existem “caixotes com livros” que parecem pertencer ao seu pai. Ao longo da narrativa, o leitor compreende que o pai do menino , que já esteve preso , é um intelectual e revolucionário. Dessa forma, fica mais uma vez evidente o papel da cultura na formação de consciência política.

2.2 A morte do Cão-Tinhoso : projeto de independência de Moçambique

No conto “Nós matamos o Cão-Tinhoso” as crianças também têm um papel central, sendo que ao matar o Cão-Tinhoso elas estariam representando a independência de Moçambique. Nesse conto que dá nome ao livro , o cão é descrito pelo narrador personagem, um garoto negro também chamado Ginho, como um cão “feio”, de “pele velha”, “cheia de pelos brancos [sic] cicatrizes e muitas feridas”, emblema do povo moçambicano colonizado, excluído. Como explica Ginho, o cão só consegue despertar o afeto de Isaura, menina considerada “maluquinha” e que aparece na narrativa como duplo do cão.
Entretanto, ao longo da estória o narrador-personagem também possui momentos de afeto e de identificação com o cão, como na passagem em que ambos estão no Clube , observando o Senhor Administrador , figura que representa a autoridade colonial, e o Doutor da Veterinária, jogarem cartas (“sueca”). No momento que o Senhor Administrador perdeu, ou melhor, “levou um capote”, Ginho e o cão riram de sua derrota, o que o deixou zangado, como relata o próprio narrador: “Ele sabia que eu sabia que ele estava a perder. Olhou para mim e para o Cão-Tinhoso sem saber com qual de nós os dois havia de correr primeiro. Enquanto pensava para resolver isso cuspiu para nos os dois, isto é, para um sítio entre nós dois. Esta-se mesmo a ver que o cuspo tanto era para mim como para o Cão-Tinhoso” (Honwana 1972:17). Nessa passagem, percebece-se na atitude prepotente do Senhor Administrador que tanto o cão quanto o menino negro são objetos de desprezo, de nojo. Ora, Ginho faz parte da “malta”, ou seja, da baixa extração social e , por isso, não é bem-vindo junto às notoriedades do local, ficando , mais uma vez, bem clara a segregação racial e social no período colonial. Também, observa-se essa organização hierárquica no grupo de meninos, na qual Quim, menino branco, é o chefe da banda. Ele insulta os outros meninos de “negralhada”, “cabroada escura”, impondo a sua suposta superioridade de branco e instaura a repressão e o medo. Aliás , é ele que obrigou Ginho a dar o primeiro tiro no cão . Contudo, fica claro que o mundo dos adultos é mais segregado do que o mundo das crianças, pois a escola que os meninos freqüentam é uma escola mista , ou seja, onde negros, brancos e mestiços compartilham um mesmo espaço.
A estrutura do conto, como em outros contos do livro, é construída como uma tragédia grega , sendo que o ápice da narrativa, ou seja , a akmé, é o momento em que os garotos levam o cão para a “estrada do Matadouro” ( passando do espaço urbano para o espaço rural) onde o matarão. Assim , a tensão da narrativa aumenta à medida que o narrador-personagem expõe seu medo e sua compaixão pelo cão. Contudo, como já foi mencionado, Ginho é obrigado a matar o cão para poder se fazer respeitar pelos outros meninos. Observa-se nesse ato , um símbolo da tradição africana, que representa o ato de matar animais como um rito de passagem para a vida adulta.
Logo, fica claro que para passar por essa transformação, essa tomada de consciência do mundo cruel dos adultos , o cão precisa ser sacrificado. Ora, associando a figura do cão, símbolo da colonização, à figura de Cristo que foi crucificado para salvar os homens, pode-se interpretar a morte do cão como expressão simbólica do renascimento do povo moçambicano que esta por vir, como confirma a afirmação de Maria Fernanda Afonso, na passagem a  seguir:
‘Nós matamos o cão tinhoso’ enuncia, em forma de parábola patética, a tomada de consciência do homem africano que, à semelhança de Cristo, teve de morrer para que renascesse o homem novo, o que pegará em armas contra aqules que lhe negarem todos os direitos” (Afonso, P 139).
Então, compreendemos que o “ nós ” do título do conto engloba tanto o sujeito da enunciação quanto o sujeito do enunciado , sugerindo a coletividade, o conjunto de todos os colonizados. Aqui, o cão representa o próprio homem moçambicano e de seu olhar tenta revelar aos meninos sua cumplicidade, seu laços fraternos. Porém , os garotos não percebem essa comunicação pelos olhos, somente Isaura e o narrador compartilham dessa verdade com o cão.
Dessa forma, o cão representa um símbolo ambígüo , pois , primeiramente, na cultura européia cristã tanto a palavra “cão” como “tinhoso” são utlizadas para substiuir o demônio , ou seja , o mal. Seguindo essa acepção das duas palavras , o Cão-Tinhoso representa aquilo que não é saudável, a doença , o mal , enfim , o peso da colonização e , por isso , deve exterminado. Em segundo lugar, através do ponto de vista infantil a descrição do cão ganha um tom lírico , pois apesar de doente , talvez sofrendo de uma catarata , o menino esboça de forma subjetiva a figura pura do cão , que , para ele, tem olhos azuis, cor celestial, de uma expressividade quase humana . Seus olhos “ sem brilho” e “cheios de lágrimas” expressam o sofrimento e a fraqueza do povo moçambicano colonizado. Cão-Tinhoso tem olhos que se alargam enquanto a boca se cala. Como descreve o narrador-criança, o cão tem “olhos grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer”. Assim , a figura dos olhos aparece no conto como um leitmotiv , pois é através dos olhos que ocorre a revelação, a tomada de consciência da realidade absurda e insólita. Ora, os olhos do cão são grandes, pois ele é o único que tem consciência. E um olhar que expressa exatamente o “entre-lugar” do povo moçambicano pós-colonial pois , que guarda nas retinas dos olhos o passado de sofrimento e , ao mesmo tempo , dirige o olhar para um presente próximo. A propósito , essa humanização do cão remete ao cão “baleia” do livro Vida Secas do escritor brasileiro Graciliano Ramos , que tinha também um olhar que expressava uma inteligência mais significativa que a do seu próprio dono.
Portanto, Honwana parece sugerir em suas narrativas que o silêncio será rompido através das crianças , esperança do futuro e da nova geração. No conto, a menina Isaura parece representar essa voz que não quer se calar. É interessante observar que o nome da menina também remete à um personagem muito importante da Literatura Brasileira (também uma ex-côlonia portuguesa que recebeu um grande contigente de escravos africanos ), a escrava Isaura , símbolo da libertação dos negros escravizados. Isaura, ao contrário dos meninos, sente a morte do cão e quer fazer justiça. Contudo , ela que é contra a violência , ameaça contar tudo para seu pai e pedir para ele bater nos meninos que mataram o Cão-Tinhoso. Ora, o desejo de punição da menina através da violência expressa uma atitude paradoxal , talvez reproduzindo a violência do sistema colonial. 

Conclusão

Ao longo da análise dos contos de Honwana , fica claro que sua obra difunde tanto um comprometimento político quanto um conceito humanista. Por isso, podemos comparar o seu fazer literário com a idéia de práxis , ou seja , uma ação objetiva que permite ao ser humano construir a si mesmo e o seu mundo, de forma livre e autônoma, nos âmbitos cultural e político.
Portanto, fica evidente o papel da literatura na formação de uma consciência política e na formação de uma identidade cultural. Como vimos , o fato da obra de Honwana ser considerada pós-colonial está associado à esse compromisso de denúncia , combate e de construção de uma identidade híbrida que não é mais obrigada à assimilar a cultura do colonizador , mas que dialoga com esta e com sua cultura africana. Assim , percebe-se que o recurso linguistico é muito importante para essa construção , pois o escritor reinventa a lingua do colonizador e a utiliza como instrumento de libertação.
Enfim , a obra de Honwana parece construir uma memória coletiva , que não esquece o seu passado de repressão , de expoliação e de discriminação social e racial. Contudo, Honwana não se limita à denúncia , vai mais longe , propondo também o respeito das diferenças numa sociedade multi-racial.

 Bibliografia
 Afonso Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas pós-coloniais. Lisboa: Caminho. 2004.
Bhabha Homi. O local da cultura. Belo Horizonte : Editora UFMG. 1998.
Lepecki Maria Lucia. “Luís Bernardo Honwana: o menino mais seu cão”. Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Fundação C. Gulbenkian. 1987.
Laranjeira Pires. A negritude africana de língua portuguesa. Porto: Afrontamento. 1995.
Ornelas José N. “Mia Couto no contexto da Literatura Pós-colonial de Moçambique”. Luso-Brazilian Review. 1996. Vol.33 , n° 2, pp. 37 -52. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3513768. Acessado: 15/12/2008.
Hamilton Russel. “ Cultural Change and Literary Expressionn in Mozambique”. A Journal of Opinion. 1978. Vol. 8, n° 1 , pp 39-42. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1166583. Acessado: 15/12/2008.
Honwana Luís Bernardo. Nós matamos o Cão-Tinhoso. Porto: Afrontamento. 4 a ed. 1972.





[1] Aqui, consideramos como humanismo o conjunto de doutrinas fundamentadas de maneira precisa nos interesses, potencialidades e faculdades do ser humano, sublinhando sua capacidade para a criação e transformação da realidade natural e social, e seu livre-arbítrio diante de pretensos poderes transcendentes, ou de condicionamentos naturais e históricos. No século XX o conceito humanista foi defendido , principalmente, por Sartre, filósofo existencialista que defendia que “L’existencialisme c’est un humanisme” e considerava que o homem pode mudar a realidade através de seu intelecto e, pelo marxismo ocidental que, por sua vez, considera homem como indivíduo que age e que pode mudar sua realidade através de sua relação com o trabalho.
[2] Ver Afonso, 2004, p. 245.
[3] Como explica Russel Hamilton (1978): « Committed literature is exhortation and a form of assurance to like-minded people that struggle goes on despite setbacks and suffering. Imaginative writing cannot win a revolution, but it can intercede emotionally and ideologically in the cause of change”.
[4]A negritude, corrente literaria e politica criada depois da Primeira Guerra Mundial e ligada ao anticolonialismo, opõe-se ao conceito de negrismo , que caracteriza de forma fetichista o negro africano. Dessa forma, a negritude tinha , por um lado, a intenção de revalorizar a figura do negro e sua cultura e , por outro lado,  rejeitar a assimilação cultural.

[5] Laranjeira (1995:359)
[6] E pertinente lembrar que durante os anos 50 , o mundo estava divido entre o mundo capitalista, representado pela super-potência norte-americana e comunista, representada pela super-potência soviética. Ora, com o intuito de difundir sua ideologia e impôr o seu poder político, a União Soviética ajudou os países africanos no processo revolucionário de idependência, como a FRELIMO. Logo, a mensagem humanista que emerge do conto “Dina” parece seguir a linha ideológica marxista.
[7] A afirmação de Laranjeira, à seguir, corrobora com essa análise do conto: “Dessas figuras nomeadas, que perfazem a formação social abrangente dos colonizados, sobretudo negros, com alguns mestiços , pode dizer-se que não conscienticializam uma classe ou um conjunto de classe ou um conjunto de classes interessadas num projeto ideológico de anti-colonialismo, nacionalismo ou de revolução proletária” (LARANJEIRA, 359)

Nenhum comentário:

Postar um comentário