6 de jun. de 2009

Teatro Português Contemporâneo- Teresa Rita Lopes


Introdução

Teresa Rita Lopes é poetisa, dramatuga e professora na Universidade Nova de Lisboa. Nos anos 60, fugindo da ditadura salazarista, instalou-se em Paris e teve a oportunidade de trabalhar como professora de literatura portuguesa na Sorbonne. Além disso, dedicou-se aos estudos do grande poeta português do século XX, Fernando Pessoa, sobre o qual publicou numerosos ensaios. Dramarturga consagrada , Teresa Rita Lopes recebeu diversos prêmios por suas peças, entre elas Esse Tal Alguém (2001) pelo qual recebeu, no ano seguinte à publição, o Grande Prêmio de Teatro da Associação Portuguesa dos escritores e, objeto de estudo desse presente trabalho.
O teatro de Teresa Rita Lopes insere-se no contexto pós-moderno, em que se retoma as propostas estéticas anteriores, mas de forma a descontruí-las, revisitá-las. Partindo desse princípio, na peça Esse Tal Alguém, a dramaturga trabalha com a estética romântica, com o tema do amor. De forma apórica , a autora parece muitas vezes aderir ao conceito romântico e, outras criticá-lo através dos elementos grotescos utilizados no teatro popular medieval europeu. Dessa forma, a oposição entre o sublime e o grotesco é desconstruída constrói o tom humorístico da peça.
Ademais, observa-se a preocupação da dramaturga em trabalhar com a questão da identidade do homem pos-moderno , em que se deve conciliar o individualismo e a coletividade. Portanto, assim Tereza Rita Lopes remete aos heterônimos pessoanos ao construir personagens multifacetados, que possuem sentimentos contraditórios. Dessa forma, o teatro torna-se um espaço filosófico, de representação do mundo e das questões metafísicas que intrigam o homem posmoderno.
Levando-se em conta tais considerações propormos estudar , primeiramente, a idéia de myse en abyme , relacionando-a com a representação da vida, com o desdobramento dos personagens e, também, com o tema central da peça: a busca do homem pósmoderno pela plenitude através do amor. Em seguida, analisaremos o papel do cômico corporal na descontrução do ideal romântico tanto no que se refere ao amor quanto à inspiração do poeta e, por fim, analisaremos o efeito de ridicularização do tema tragico do suicídio.
1 A estrutua de mise en abyme da peça
2.1 O teatro como representação da vida
No entre-acto os semi-coros que representam as vozes masculinas e femininas, remetem ao modelo da tragédia grega. Contudo, ao contrário da tragédia, a peça não possui um princípio, meio e fim , sendo uma peça fragmentada . Nesse sentido, é interessante observar que a peça é estruturada através da idéia de mise en abyme, ou seja, numa trasposição de cenas que apresentam uma certa independência uma da outra. Como explica Tereza Rita Lopes, logo no início do livro: “ Cada cena desta proposta de espetáculo tem vida própria. Este conjunto de cenas pode, por isso, ser diferentemente baralhado, e dado – embora a sequência apresentada vise um determinado dinamismo. Admite-se, porém, que o encenador experimente criar um dinamismo diferente”.
Essa idéia de mise en abyme também remete ao fazer teatral, como se existesse um teatro dentro do próprio teatro. Como descreve ainda a autora, na primeira cena:
Um bonecreiro prepara as suas marionetes de cordel para o espetáculo de feira que se vai seguir. São dois bonecos, uma Ela e um Ele, que o homem vai ajeitar no teatrinho em que os vai exibir. O homem ajusta os cordelinhos aos dedos e esconde-se atras do pano que encobre do publico. Ouvem-se as três pancadas de Molière: quando o pano do teatrinho abrir, devagar, fechara o do teatro a valer, em que estamos. O público devera aperceber-se desse paralelismo [grifo nosso] (p.16).

Portanto, a autora sugere um plano pluridimensional, o que nos leva a refletir sobre a própria condição humana. Ora, o homem diante o mistério de sua existência questiona-se sobre sua origem: seríamos a obra de um Deus, ou de um ser que nos manipula como marionetes? Seríamos o sonho de um outro alguém? Incapaz de encontrar respostas para essas questões existenciais, o homem cria um microcosmo da vida real através da arte (mimesis), voltando-se para si mesmo, para seu imaginário. Dessa forma, o “bonecreiro” assim como o autor da peça tornam-se a autoridade divina desse mundo ficcional.


2.2 O desdobramento dos personagens
Percebe-se, ainda, que Tereza Rita Lopes explora a idéia de desdobramento dos personagens, sugerindo a possibilidade destes serem um ou vários seres, mas sempre duais: um ser masculino (Ele) e um ser feminino (Ela). Pois, como propõe a autora no início do livro: “cada ser é sempre, afinal, uma florescência de seres...”(p.12). Com efeito, sendo os personagens uma forma de representação dos seres humanos e da relação destes com o mundo real através da linguagem, pode-se constatar o quanto somos seres complexos, ambíguos. Desse modo, na peça, através de uma narrativa de primeira pessoa, os personagens nos revelam seus conflitos interiores: suas buscas existencialistas, suas desilusões amorosas.
Além disso, em cada entre-acto, o semi-coro arremata a idéia desenvolvida em cada cena, o que reforça a possibilidade de expansão de um ser em vários outros seres, como a estrutura das bonecas russas: uma dentro da outra. Enfim, esse desdobramento dos personagens remete à construção da identidade no mundo moderno, em que o homem torna-se um sujeito fragmentado, dividido entre o individualismo (eu) e a coletividade (nos):
Portanto, o homem moderno é uno e, ao mesmo tempo, multiplos, ou seja,ele possui uma identidade individual e, também, uma identidade coletiva. Aliás, tendo em vista que a autora consagrou seus estudos acadêmicos à obra do poeta modernista português, Fernando Pessoa, é interessante fazer uma analogia dessa idéia de desdobramento dos personagens com os heterônimos pessoanos, tais como o bucólico Alberto Caeiro, o modernista Alvaro de Campos. Contudo, ao contrário dos heterônimos de Pessoa em que cada personagem apresenta uma biografia, um perfil psicológico delineado, enfim uma complexidade, na peça de Teresa Rita Lopes as personagens são planas, ou seja, definidas num momento determinado.
2.3 A busca da plenitude através do amor
Uma das formas do homem moderno construir sua identidade individual, tornar-se singular ao meio da massa, é através do amor. Dessa forma, observa-se na sociedade moderna ressonâncias do idealismo romântico, movimento filosófico e artístico, que se desenvolveu no fim do século XVIII e início do século XIX, e que expressa a idéia de uma amor que busca a unidade absoluta entre os amantes. Portanto, observa-se que Teresa Rita Lopes relaciona a condição humana com a busca da plenitude do indivíduo, para o qual a felicidade se encontra no relacionamento entre duas pessoas Como se pode constatar no entreacto 5, através do semi-coro 2:
Esse tal alguém que brincou a criar-nos
Quer que lhe sintamos a falta
Por isso inspira-nos rituais para irmos mantendo viva essa ferida que nascer nos fez no corpo mas por dentro não sabe onde, para irmos assoprando como uma brasa essa ferida em fogo: o corte do cordão que a Ele nos ligava [grifo nosso] (p.90).
Nessa passagem, percebe-se a que os seres humanos estariam condenados à buscar o sentido de sua existência como num jogo ou numa mise en scène. Essa busca , esta relacionada com a procura da outra metade, da “alma gêmea”, aqui relacionada com a palavra “cordão” que remete ao umbigo, parte do corpo humano que para os gregos representa a cisão de dois seres que, outrora, eram unos. Com efeito, essa idéia de uma outra metade é desenvolvida por Platão através do mito dos seres esféricos, ou seja, dois seres fundidos num só: com duas cabeças , quatro braços, quatro pernas e duas genitálias, que viviam num estado edênico. Segundo esse mito, num certo momento, havia na terra três gêneros de seres esféricos: o masculino, o feminino e o andrógino. Mas, essas criaturas decidiram invadir o Olímpo e, por isso, foram castigadas por Zeus , que ordenou a Apólo que os cortasse ao meio. Assim, esses seres transformaram-se em humanos, com uma cabeça, dois braços, duas pernas e uma genitália. Feito isso, Apolo girou para trás os braços, as pernas e a cabeça desses novos seres, de forma que eles, ao olharem para o próprio umbigo e, assim, lembrassem do castigo divino. Espalhadas pelo mundo, esses seres estavam condenados a vagar em busca de suas respectivas metades.
Nesse sentido, a autora sugere que o amor seria a forma da alma humana encontrar a sua verdadeira morada. Com efeito, essa idéia é representada de forma alegórica através da casa, como se observa na cena 5, em que, a personagem que, no início, idealiza uma casa. Porém, no fim da cena, a personagem acaba concluindo, ironicamente, que o melhor é “sonhar com as coisas. Como com o tal alguém que se não tem. E quando se tem, esse alguém torna-se ninguém. Com as casas é o mesmo. Com as casas é o mesmo. Isto é, quando as casas nos têm, vão-se-nos as asas- e as casas já só servem para morar” (p.76). Aqui , percebe-se que para a autora é o desejo que alimenta a alma do ser humano. Seguido essa idéia, a personagem conclui , no fim da cena, que existe uma distância entre a idealização romântica e a concretização daquilo que almejamos:
Isto com as casas é como com os homens: a gente inventa-os, isto é, sonha com eles e depois das duas, uma: ou não quer nenhum porque nenhum chega aos calcanhares do sonho, ou lá os vai ajeitando, como a casa, à nossa vida: uma flor aqui, um espelho dali, um cortinado acolá... (p.86).
Portanto, ao mesmo tempo que o amor aparece como tema central da peça, como uma necessidade do ser humano (ligada à pulsão sexual ou ao amor idealizado), essa sensação de plenitude revela-se efêmera, como se tudo fosse uma brincadeira, nada devesse ser levado à sério, como exclama o semi-coro 2:
Não sei que deus absurdo nos manipula assim como fantoches de cordel. O pior de tudo é que nos condenou a amá-lo cegamente através dos efémeros parceiros que nos põe no caminho. Sera o amor um faz-de-conta? Sera toda a vida um faz-de-conta? Quem nos põe a amar a sofrer a morrer como quem brinca? De quem somos brinquedos? Sera melhor não sabermos? Não pensar? Tem que ser! Vamos brincar à vida! (p.20).
Aqui, observa-se através das questões ontológicas, ou seja que tocam o ser , e também as questões sobre o próprio mundo ficcional , o teatro torna-se um espaço filosófico.
2 Descontrução do ideal romântico: o sublime versus o grotesco
2.1 O cômico corporal
A autora parece estabelecer uma estrutura apórica, pois ao mesmo tempo que os personagens parecem aderir ao romantismo, opõem-se a esse ideal através da evocação do grotesco e do baixo corporal. Com efeito, ao longo da peça, o humor se instaura através dos elementos grotescos, oriundos da cultura popular medieval, ou seja, das festas religiosas de cunho cômico, como o risus paschalis , e das festas de cunho profano , como o carnaval em praça pública, onde o sagrado, o sério era transformado em alvo de ridicularização. Havia , então, uma inversão de valores , que Bakhtin denomina no seu estudo L’oeuvre de François Rabelais: inversão carnavalesca. Ora, a importância dessas festas estava no seu poder purificador, de libertação do medo da condição humana (vida e morte) e da opressão política, religiosa em que se encontrava submetida a população na época medieval. Portanto, o cômico no teatro europeu tinha um caráter universalista , mas, também, ambivalente. Essa ambivalência surge do jogo entre o sério e o cômico através da paródia, do vocabulário popular grotesco que remete à imagem do baixo corporal, dos excessos: comida e bebida, como se pode observar no teatro do dramaturgo francês François Rabelais e do dramaturgo português Gil Vicente.
Logo, percebe-se que nessa peça pos-moderna, Tereza Rita Lopes faz uma paródia dos ideários românticos ao utilizar tais elementos. Ainda, observa-se que através da presença do coro a peça remete à tragédia grega, contudo , ao contrário desse modelo dramático sério, a peça aqui estudada apresenta um tom humorístico.
Na cena 3, por exemplo, o amor e a poesia , dois elementos essencialmente elevados para os românticos, opõem-se ao grotesco e ao baixo corporal ; criando , dessa forma, o efeito cômico da cena. Ora, essa cena trata de um homem “romântico” que escreve poemas galantes para suas namoradas. Mas, ele tem uma grande dificuldade de assumir com naturalidade suas necessidades fisiológicas diante de suas namoradas e , por isso, acaba por perdê-las. Como explica o personagem à seu psicanalista: “Já sei que sou romântico, toda a vida mo censuraram. Mas a verdade é que eu não lhe podia dizer assim sem mais nem menos: ‘Espera um bocadinho, vou mijar, volto logo’”(p.38). Ora, para o personagem é difícil a associação do conceito de romantismo com a idéia do excremento, do baixo corporal. Assim, o tom humorístico surge da associação desses dois elementos e, também, do vocabulário que traz um sentido escatológico (mijar, urinar, bexiga, etc). Como se pode observar ainda na passagem em que o personagem estava no Metropolitano com sua namorada e teve uma vontade , que “veio de repente”, de urinar. Ele explica que sua bexiga parecia “que ia rebentar” e que sua namorada encostava-se nele fazendo uma compressão incômoda. Assim, a namorada notou que “se passava qualquer coisa que não percebia” e, então perguntou-lhe:“Porque é que fazes essa cara feia quando me encosto a ti?”. O personagem não quis dizer a verdade e, por isso, disse: “Gosto tanto de ti que até me faz doer!”. Ora, aqui, o sentimentalismo romântico é convertido em elemento cômico, pois sabe-se que a dor não é provocada pela paixão, mas pela vontade de urinar.
Em seguida, quando passeavam no parque o personagem , que ainda tinha necessidade de urinar, deu um berro quando a namorada se jogou com força contra suas “partes doridas [sic]”. A namorada ignorando a verdadeira razão de seu ato passa a duvidar de seus sentimentos por ela e, então, exclama “furiosa”: “Só me queres para me escreveres baboseiras nas cartas, mas quando estou ao pé de ti tens horror do meu corpo!”. Ora, mesmo ignorando a razão da rejeição do personagem, a namorada consegue explicar a causa de seu comportamento . Com efeito, o personagem que idealizava o amor e utilizava sua namorada como musa inspiradora para escrever poemas, sente uma repulsão por tudo que é ligado ao baixo corporal, ou seja, o excremento (urina, secreções nasais). Como explica o próprio personagem: “E possível que eu devesse ter explicado que estava só com vontade de mijar. Mas como é que eu, o autor daquelas cartas que ela achava tão românticas, ia fazer uma confissão dessas?Eu não respondi nada, o que é que eu ia dizer?[...]” (p.40). No momento em que sua namorada parte com raiva, o personagem pode , finalmente , aliviar-se. Porém, apesar de ter feito suas necessidades, o personagem descreve uma sensação de vazio que , segundo ele, era um vazio que ele “não sabia se era da bexiga esvaziada” ou “se era a solidão de ter ficado sem aquele amor com que tinha sonhado, dia e noite, durante meses a fio”(p.40).
Observa-se, portanto, que para o personagem é inconcebível revelar a verdadeira razão do seu comportamento por não condizer com sua imagem de poeta, figura sublime e romântica ao seu ver. Com efeito, para os românticos a arte era considerada maior quando relacionada com o elevado e o superior , sendo a cabeça o membro da elevação já que, para os iluministas, estava ligado à razão, ao homem civilizado e para os românticos ligado à inspiração divina do poeta. Logo, essa concepção romântica da arte opunha-se ao baixo corporal , representado pelo ventre, as tripas, que estava ligado ao irracional, ao animal e ao grotesco. Como explica o filósofo romântico, Schiller: “O asqueroso é imediatamente contrário aos sentidos: ele importuna nossa fruição, como diz Kant com muito acerto, imiscui-se na fruição. Que o asqueroso nos contrarie fisicamente, exclui inteiramente o seu uso da arte”(p.72) .
O entreacto 3 arremata , portanto, a oposição entre o grotesco e o sublime através do semi-coro 2 que exclama:
Coitadinhas das pessoas, pobres animais aflitos/com vergonha das suas necessidades!/ Os bichos cumprem-se, não representam./Mas, eles, os homens, têm que se atribuir um papel qualquer, neste faz-de-conta para que os empurraram./ Têm a ilusão de que são eles a distribuir os papéis a dar as cartas: mas é Ele/ ou Ela/ quem lhe ordena ‘Tu fazes deste ou daquele, desta ou daquela’ (p.50).
Ora, nessa passagem tem-se a idéia de que os homens apesar de utilizarem a razão e a arte como elementos que os distinguem dos animais possuem como estes necessidades fisiológicas, impulsões naturais.
Ainda, critica-se o comportamento dos poetas românticos que se equiparam aos deuses por representarem através da escrita um microcosmo do mundo real. Com efeito, ao contrário de Platão para quem a arte deformaria a realidade, para os filósofos românticos o poeta seria um ser elevado, dotado de razão, poderia reproduzir o mundo através da arte. Como explica Schiller: «Como ser animal, o homem ama apenas a si mesmo, denpendente das leis da matéria, das quais somente a racionalidade (Rationalität) o arranca, bem como da coerção da natureza, para submetê-la ao dominio da razão (Vernunft)” (p.35). Dessa forma, o homem diferenciaria-se dos outros animais pela razão e pela capacidade de , como Deus, transformar a natureza através da arte. Ainda, a estética ou “o gosto”estaria aliada à razão para construir “uma representação sensível a algo supra-sensível”. Ou seja, através duma concepção anti-platônica, Schiller defende a idéia de que o poeta romântico poderia representar o mundo das idéias (supra-sensivel) através da mímesis pois , segundo Schiller, o gosto “conduz do mundo sensível ao inteligível, ganhando para o sensivel, mediante a referência ao supra-sensível, o respeito da razão”(p.35) .
Essa oposição entre o elevado e o grotesco, entre a razão e o instinto, também é trabalhada através da pulsão sexual. Com efeito, os estímulos sexuais estão relacionados com o baixo corporal, com as genitálias e, portanto, com o instinto animal. Aliás, pode-se observar essa oposição na cena 4, em que o personagem masculino deseja passar sua relação para o ato sexual, enquanto a personagem feminino quer aos poucos descobrir e idealizar o ser amado. Assim, a personagem feminina propõe um jogo em que ambos de olhos vendados palpam o corpo do outro. Portanto, enquanto o homem deseja , impacientemente, tocá-la nas partes baixas do corpo, a mulher deseja que ele tome seu tempo para conhecer a parte superior do corpo (cabeça, ombro) . Ou seja, enquanto o homem possui uma pulsão sexual, a mulher deseja uma relação idealizada. Ao desrespeitar a regra do jogo, o personagem masculino é , então, confundido com um depravado e levado ao tribunal.
O semi-coro retoma essa oposição das duas idéias , opondo os dois sexos. De um lado, o semi-coro 2 que representa as vozes masculinas e o instinto sexual, exclama: “Ao bicho homem so o desejo é dado./ A paixão é fogo que roubamos às vezs aos deuses/mas não sabemos administrar./ Por isso anseamos por algo ou por alguém/ que não é deste mundo./ prendê-lo é perdê-lo/para sempre/A paixão acaba onde chega” (p.68). Mas, de outro lado, o semi-coro 1, que representa as vozes femininas e a idealização romântica do amor, afirma: Amar não é chegar. E tão melhor ir a caminho / ao encontro de alguém!/ A paixão devasta/ como um fogo na floresta/ como vulcão desperto/ e tão melhor estar enamorado! / Desejar/ sem tocar/ como a Lua levanta o dorso das marés”(p.68).
Enfim, através da cena 2 , a autora trabalha com a concepção romântica da idealização do amor que nunca é possível. Nessa cena, o personagem masculino narra ao psicanalista a sua obsessão , sua paixão absurda por uma modelo que ele contemplava num calendário. Mas, ao encontrar na rua um mulher real , “de carne e osso”, que correspondia fisicamente à essa modelo , o personagem não consegue concretizar o seu desejo. Aliás, observa-se , nessa cena, que Tereza Rita Lopes, ao mesmo tempo que parece aderir ao conceito romântico, critica-o, demonstrando o quanto são complexas as relações humanas. Com efeito, o personagem ao ultrapassar o plano das idéias, não consegue estabelecer uma relação concreta com a mulher real, que ao contrário da foto, tinha exigências, desejo de possessão. Como declara o personagem: “Quando ficava de novo a sós com a do calendário desabafava as minhas mágoas. E ela compreendia tudo- e não tinha ciúmes, como a outra” (p.32). Desse modo, o personagem compara essa mulher idealizada à imagem da Nossa Senhora que encontra-se na cabeceira de sua cama. Porém, ironicamente, mesmo sendo uma mulher sublime, quase transcedental, ela é descrita como uma mulher sensual. Como descreve o personagem, ao relatar a primeira vez que avistou sua imagem: “ela estava mesmo ali, diante de mim, quase nua, uns olhos azuis muito claros, rasgados, umas pernas altas, morenas, uns beicinho gordinho, como passarinhos, e uns seios muito cheios, a rimar com beiços...” (p.22). Portanto, a foto está longe de representar uma mulher concebida pela estética romântica, ou seja, virginal, alva e inatingível, pois trata-se de mulher sensual, voluptuosa.
2.2 A inspiração do poeta :sublime versus grotesco
Ainda, percebe-se na peça a crítica à concepção de inspiração romântica, ou seja, a idéia de que o trabalho poético não está relacionada com a lima, com o trabalho com a linguagem, mas com a inspiração divina. Como se pode constatar na cena 5, em que a personagem é um poeta que parte em busca de uma casa com uma bela vista que o inspire. Após uma longa busca, ela acaba encontrando a casa que tanto idealizava. Como explica o narrador: “Alugou-a e levou para lá a sua secretária que pôs junto à janela donde se via a serra toda E todos os fins-de-semana lá estava ele, de cotovelos apoiados, a buscar a inspiração no recorte das montanhas contra o céu [grifo nosso]” (p.84). Ora, os poetas românticos consideram-se seres elevados, iluminados que conseguem comunicar com os deuses através da natureza, e assim, realizar sua criação literária.
Analisemos a palavra inspiração, expressão de origem latina , inspirare ,que significa soprar , comunicar, receber influência divina . Assim, através da natureza, o poeta receberia o sopro criador das musas. Ora, as musas , eram ninfas elevadas à divindades, e evocadas pelos poetas gregos tais como Homero e , assim, resgatadas pelos românticos. Contudo, nessa cena, a inspiração divina parece inatingível, como descreve o narrador:
Mas de poema nada. Desiludido, furioso mesmo, um dia fechou-se num quarto sem janela, de cara voltada para a parede, e gritou: ‘Mostra-te! Eu bem sei que tu moras dentro de mim mas não te queres dar a conhecer!Não quero morrer sem te ter dado à luz!’Mas nem assim. As musas não se comoveram e não deixaram sair o poema [grifo nosso] (p.86).
O poeta fica então “desiludido” por buscar em vão a inspiração e, por isso, acaba desistindo de escrever. Contudo, a inspiração surge de forma inesperada, no momento em que ele estava fazendo suas necessidades fisiológicas. Ironicamente, o narrador explica que por sorte ele havia um “lápis ao alcance da mão”, mas por falta de papel, o poeta serviu-se de papel-higiênico e, assim, “deu , finalmente, à luz o poema da sua vida!”.

2.3 O suicídio: ridicularização de um tema trágico
Através do tema do suicídio , explorado na cena 6, observa-se ainda a crítica ao movimento romântico. Ora, para os românticos, a paixão não correspondida, acarretava num fim trágico, pois o ato de dar fim à própria vida representava um ato de coragem através do qual obtinha-se a sublimação do poeta apaixonado. Como se observa no romance do escritor alemão Goethe, O sofrimentos do jovem Werther (1774), em que o protagonista alimenta uma paixão profunda e tempestuosa por Charlotte. Mas, como sua amada já estava comprometida com outro homem , Werther decide dar cabo à sua vida.
Na cena 6, o personagem masculino quer matar-se para poder libertar-se da paixão que o consumia por dentro. Primeiramente, livra-se dos objetos inúteis que possuía em casa. Em seguida, tenta desfazer “ de uma cara, um corpo inteiro, um numero de telefone” do qual queria se “livrar”. Não conseguindo desfazer-se desse sentimento, o personagem então decide matar-se para , assim, apagar da memoria a sua amada. Mas, enquanto o personagem começa a arquitetar seu suicídio, passa a divagar sobre as consequências de seu ato e o efeito que este repercutiría nos outros. Então, ele passa a questionar e a vacilar diante a possibilidade de se matar. Como questiona: “Sera que tenho mesmo curiosidade de saber em que paragens me vou encontrar daqui a pouco?”(p.98). E, mais adiante: “Mas sera que uma pessoa deixa de existir, sem mais nem menos, e não deixa rasto nenhum , e nada fica dela? Talvez eu preferisse que assim fosse...”(p.100). Contudo, hesitante o personagem decide escrever cartas de adeus para seus amigos e, também, para a amada e, acaba por justificar que “isso não é deixar rasto... As cartas, depois de lidas, vão para o lixo. Sera que ela vai pôr a minha carta-isto é, o meu bilhete-no lixo?” (p.100). Em seguida, o personagem explica estar com tonturas por estar com fome. Assim, coloca o avental e vai a cozinha preparar “um ovo estrelado” e justifica-se: “A verdade é que preciso de energia para os últimos preparativos. Para não me tremer a mão” (p.100). Nesse momento, estabelece-se o cômico através da oposição entre o tema sério do suicidio e a gula do personagem, relacionada as necessidades da vida corporal. Como se observa à seguir: “Além disso não quero que a morte me caia na fraqueza. Não sei se ponha o chourição... Sempre adorei chourição mas faz-me ca um mal à figadeira... Assim como assim, é so no dia seguinte... e amanhã ja não estou ca para amargar a crise...” (p.102). Portanto, apesar de desejar matar-se, desprender-se de sua vida , o personagem ainda esta ligado ao excesso dos vícios terrenos, tais como a comida. Ora, além dessa situação criar o ridículo da cena, percebe-se que tais divagações servem de elementos retardatários para o ato que se pretende praticar.
Por fim, o personagem decide matar-se. Assim, a ápice (akmé) da cena instala-se através da tensão de alguém que bate na porta “cada vez com mais força” enquanto que o personagem prepara-se para dar o tiro. Contudo, não se ouve a detonação e o personagem que tinha caído de lado, apalpa-se e , confuso, interroga-se: “Estou vivo ou morto?”. Ele, então, percebe que sua amada havia subtraído as balas do revólver. Ora, aqui, ao contrário, da tragédia grega em que há um desfecho trágico, o personagem acaba frustrado por não ter conseguido acabar com sua própria vida. Por isso ele exclama: “ Falhei a minha vida e agora até a minha morte”. Portanto, ironicamente, ao invés de acabar como um herói, como no romance de Goethe, o personagem finaliza a cena como um fracassado.
Conclusão
Portanto, percebe-se que na peça o teatro torna-se um espaço filosofico, em que se questiona sobre as existência do homem e, também, onde se representa o homem pos-moderno, ou seja, um individuo fragmentado, uno e, ao mesmo tempo multiplo.
Observa-se também , na busca do homem pela plenitude através do amor, revela-se fadada ao fracasso, devido a total incapacidade de comunicação entre o homem e a mulher . Além disso, à partir da oposição entre o tema do amor idealizado e de elementos que evocam o baixo corporal ocorre a construção do cômico. Dessa forma, observa-se que a autora critica o ideario romântico colocando em contraste o sublime e o grotesco. Ainda, nota-se a ridicularização do tema tragico do suicidio, muito explorado pelos poetas românticos do século XVIII e XIX.












Bibliographie
Bakhtine Mikhaïl. L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance. trad. du russe par André Robel. Paris: Gallimard. 1970.
Lopes Teresa Rita. Esse tal alguém. (ed. bilingüe). s.l. Ed. Lusophones. 2004.
Schiller Friedrich. Fragmentos das preleções sobre estética do semestre de inverno de 792-93. Trad; Ricardo Barbosa. Belo horizonte: Ed. UFMG. 2004.

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